terça-feira, 16 de março de 2010

Derli Dutra - Depoimento




O "Seu Aristeu"

Quando comecei a trabalhar na Cooperativa Agrícola Mista Ourense Ltda, já conhecia de "vista"o vizinho que trabalhava com artefatos de concreto, e que vez em quando "roubava" um amigo de jogo de futebol no velho campinho do depósito de serragem para dar-lhe emprego em sua oficina.

Mas ele não trabalhava mais fazendo tubos para bueiros, palanques e coxos de concreto e até lápides para sepulturas. Agora era o balanceiro da Cooperativa, que com o fim da era da madeira e as madeireiras fechando com a proibição do corte de pinheiros, uma cooperativa cerealista era a esperança de muitos como eu de encontrar trabalho na própria cidade.

Com o passar dos dias, naquele final de 1971, início de 1972, fui percebendo que ele não era para a cooperativa um simples balanceiro, mas o coordenador das atividades de recebimento, preparação e expedição dos cereais entregues pelos agricultores associados que tinham nele absoluta confiança. Numa tarde chuvosa de 1972 acabei descobrindo uma outra qualidade do "seu" Aristeu. Ao lado do armazém número um, fez-se um "puxado", anexo para abrigar a balança e servir de escritório, na época havia muito mato ao redor e ninguém pensou em instalações sanitárias. No ano seguinte com a ideia de ampliar construindo um armazém e secador ainda maiores foram-se as moitas e restou urna improvisada latrina totalmente imprópria para uso humano. Lá fora chovia e sentado em uma mesa ao lado da minha o "seu" Aristeu e o agrônomo Renato Christmann, que era meu chefe na época, elaboraram uma espécie de pré-orçamento e com ajuda de retalhos de papel milimetrado e um mal apontado lápis número um, seguindo suas instruções fiz o desenho da planta, saiu um banheiro do lado direito da porta lateral do A-I, com três vasos sanitários, dois chuveiros, mijadeiro masculino, pia e um reservado para visitantes. Assim descobri que todas as construções, do inicio em 1970 até sua saída, já nos anos 90, foram todas projetadas e construídas pelo próprio.

Com o crescimento da Cooperativa criaram uma filial na cidade de Barracão e para lá mudou-se o "seu" Aristeu com familiares, malas e cuias com o fim de construir e gerenciar a nova unidade até que pelo menos os novos funcionários fossem capazes de fazer a filial funcionar.

O destino havia reservado a ele a oportunidade de fazer em sua terra natal a empresa que seria fundamental não só para o desenvolvimento da agropecuária local, mas da cidade como um todo, na época encarregado de prestar assistência ao serviço dele seguidas vezes viajei num velho jeep para trabalhar na filial de Barracão, ensinando os novos funcionários e expedindo cargas da produção recebida e quando não era possível fazer as refeições no único estabelecimento da cidade, a bodega do Gentil Clamer, tinha o grande prazer de mais uma vez experimentar da fidalguia do colega.

Com a filial ja andando com as próprias pernas, ele voltou para Sao José do Ouro, e aqui teve o mais espetacular de seus desafios, ampliando as instalações da Matriz, teve de enfrentar um problema que irritava os Diretores, primeiro: o calor produzido para secar grãos não era uniforme, causando prejuízos, depois, nos produtos armazenados, segundo: consumia muita lenha. A essa altura, eu ja tinha outro chefe o agrônomo Walter Celso Brandtner, que também trabalhava como agrimensor, a parceria com o "seu" Aristeu foi imediata e sobrou para mim a parte do desenho.

Havíamos conseguido na prefeitura uma velha mesa de desenho e a usávamos no departamento técnico da Cooperativa para serviços da empresa e do agrônomo. Voltando ao problema do secador, por diversos dias eu o vi sentado na mesa de desenho examinando as plantas do secador e do forno, uma tarde mostrou-me o que estava pensando fazer, tratava-se alterações no projeto inicial da fábrica de secadores, mudando a passagem do fluxo de calor por dentro do forno do secador, de forma que ele sai-se homogêneo e muito potente na máquina, resolvendo o problema de secagem. Meses depois, pode-se constatar que ele estava certo, nao só pela boa qualidade da secagem, o que proporcionou melhor conservação dos cereais, mas constatou-se urna economia de lenha em tomo de 20%, o que foi aplaudido e admirado por diretores e engenheiros da cooperativa e da fábrica de secadores. Pensemos nurna façanha destas nos nossos dias; quando se tenta convencer um homem que uma árvore em pé, vale muito mais que uma árvore derrubada. Aqueles 20% correspondiam a quantos metros cúbicos de madeira (não consigo lembrar)? E correspondiam a quantas arvores? Concluindo; isso ocorreu no início dos anos 80, mais ou menos 1982, até os dias de hoje quantas árvores deixaram de ser derrubadas, que tamanho teria a floresta salva por um velhote calculista.

A exemplo de Barracão, construiu unidades em Machadinho, Cacique Doble e Santo Expedito do Sul, mas a sua grande obra está bem em frete as instalações da CAMOL, na sede em Sao José do Ouro.
Oriundo da regiao noroeste do estado o Eng. Agr. Walter Celso Brandtner admirava as instalações da Cooperativa de Sarandi, enviou-me até lá para conhecer o prédio do escritório e desenhá-Io para servir de referência ao projeto que o Dr. Killer, apelido que ele deu ao "seu" Aristeu, amante de leitura, que sempre tinha urn livrinho na gaveta de sua mesa de trabalho, do gênero faroeste, seu preferido, quase sempre.
Assim nasceu o projeto e meses depois, já estávamos na nova obra do velho Aristeu. umn confortável prédio que passou a ser nosso escritório, mas ele preferiu continuar em seu cúbiculo mal iluminado, no anexo da balança.

Enfim, um sujeito que criava planilhas para controle operacional com lápis e régua escolar, em qualquer tipo de folha de papel, fazia prójetos de silos, armazéns, prédios em retalhos de papel milimetrado, usando uma lapiseira metálica 0,5mm e um desdentado escalímetro, trabalhava em uma velha prancheta cheia de furos, com uma lâmpada incandescente, queimando a calva, e usava uma velha calculadora (Facit) a manivela e que pôs em pé instalações que tempestades e vendavais jamais abalaram, e que continuam sendo as melhores que temos, um sujeito que entendia de administração, construções, instalações, que fazia da matemática diversão, que projetava e executava obras que resistem ao tempo, não era um sujeito qualquer. Esse indivíduo, franzino, com a calva sempre protegida pelo tradicional boné de orelhas, de óculos grandes, sempre embaçados, que gostava de usar bombachas, ouvir boa música, mergulhar no mais profundo de sua inteligência, envolto na fumaça do cigarro e no sabor do cafezinho da Baixinha, em sua prancheta. Das nossas imperfeições, a vaidade e a arrogância, são as que mais prejudicam a visão de nossa inteligência, demoramos a perceber que a pessoa próxima de nós tem mais que um dom, tern genialidade, o dom dos dons, pois o sujeito com quem convivi por quase três décadas, quase todos os dias da semana, era um desses, escondido atrás de um sorriso de moleque, quando seu bigodinho grisalho parecia o fole de um acordeão, que às vezes dedilhava algum  clássico, deixando rústicos sanfoneiros boquiabertos.

ARISTEU FERREIRA DOS SANTOS, não tinha listas com certificados e diplomas em seu currículum, aliás, coisa que nunca fez, seus diplomas e certificados eram modestos, o que o fazia tão criativo era o hábito de ler constantemente, não deixou sequer um livro relatando o que sabia e podia, fez algo muito melhor: passou a seus filhos e filhas o seu melhor, o gosto pela leitura, por isso seus herdeiros vão de competentes professoras a bancários e juízes.

Um dia, já aposentado, irritado com a maneira que os diretores tratavam os colegas operários, por cujos direitos sempre lutou, retirou-se, abrigou-se entre seus livros e nunca mais voltou.

Quando o vi pela última vez, eu estava em uma clínica tratando meu já debilitado sistema cardíaco, conc1uí que o grande mestre do universo deve estar preparando um grande projeto, algo revolucionário e certamente meu velho amigo e mestre ainda sorridente, estava convocado para participar.

Dias depois, os sinos dobraram, o meu Mestre atendera a convocação.

Lavrada em minha biblioteca, em 07 de janeiro de 2010, às 17h30min.

Derli Dutra