terça-feira, 15 de maio de 2012

Frente de casa

Filipe Rossato


   Três anos vão completar, e ainda não entendi como foste embora. no agitado fim de semana, em que fizemos malas, viagens e discursos, o mundo parou de girar por alguns instantes para que partiste dele, e, apesar da minha idade já avançada, das minhas experiências anteriores, do que quer que seja, ainda não entendi.

   Os teus olhos já não brilhavam mais, e tua força em querer expressar o carinho que tão suave um dia demonstrou encerrou minha contemplação. eu estava ali, no epicentro da dor, ainda que não a conseguisse sentir. os dias gelados passaram lentamente e provavelmente nunca mais sairão da minha memória, mais pela incompreensão do que pela dor. tu estavas indo embora, mas tantas vezes eu fui também, e foste e foram, que os olhos não poderiam sentir nada além de outro adeus.

   Para quem já deu tantos adeus, tu estavas indo embora como se vai ao terminar a vida. que outra lição tiramos desse labirinto de ciclos em que nos achamos dia após dia? que dor nova eu deveria sentir ao ver outra despedida, entre tantas maiores e mais significativas para mim? que choro deveria ter vindo, mas nunca chegou? 

   Daqui a pouco, será o terceiro ano que não estás mais aqui. e, de todas as despedidas, essa talvez tenha sido a que menos me doeu. mas, ao te rever hoje, ao relembrar as madeiras azuis da tua casa, a salinha cheia de objetos, o teu cumprimento afetuoso, as árvores da tua rua, eu sinto. que instante mágico entre mim e ti, talvez os mais distantes dentre todos, te coloca em meu caminho e em meus pensamentos dia após dia? que curiosa conexão criou-se entre nós agora que não estás mais aqui. 

   Tu foste embora, enfim, e, em meio a tanta dor, eu não chorei. para todos, a despedida derradeira da tua vida, mas para mim... daqueles dias congelantes, daquele hospital melancólico, daquela igreja dolorosa, a incompreensão que me resta não me consola e não te deixa morrer. ainda estás lá, na tua casinha, com teus olhinhos, eu é que parti. para que eu chore, é preciso que eu volte, e assim tu te vais, mas sabemos: a vida é um caminho sem volta. e, nesse trajeto, não retorno mais. 

   Então vais estar lá para sempre, na tua varanda, com teus livros e teu xadrez, teus mistérios e teus segredos. quanto a mim, seguirei por aqui, confiante, vida afora, pelos conselhos nunca recebidos de ti. nossos hemisférios não se acharam, mas é uma questão de espaço, não de tempo. vai ser engraçado, um dia nos encontraremos, eu no meu universo, tu na tua varanda. os dois que foram embora. 

   me acolherás com teus olhinhos. eu vou chorar; e tu, rir de cantinho.