domingo, 26 de dezembro de 2010

A saga de um sonhador

sábado, 18 de dezembro de 2010

A Melhor Música


Frases que duram para sempre. Já havíamos conversado um pouco, mas nenhum assunto disfarçava aquilo que todos nós, tanto eu e a Mari como o próprio pai, naquele momento, intimamente sabíamos: era chegada a hora dele partir. Fez algumas brincadeiras sobre a cachaça com cipó-mil-homens, a lida no quintal e o dia em que forças faltaram e foi socorrido por um vizinho que passava na rua. A noite se aproximava, era um anoitecer diferente. As energias que fizeram de meu pai um octogenário quase eterno, agora, aos poucos, iam lhe abandonando de mansinho. Meu Pai estava cambaleante, via-se a peleja da vida contra a morte, em alguns momentos até parecia que sobreviveria. Após um longo silêncio, perguntei-lhe se por acaso não queria ouvir alguma música, alguma daquelas suas preferidas que tínhamos ouvido no dia anterior, entre elas, Dio Come Ti Amo e Esquilador, sobre esta última, comentou na ocasião que, quando moço, gostava de tocar em seu violão. "Não, respondeu (com o fio de voz que lhe restava), vocês são a melhor música".

Desde então, toda vez que a mídia faz referência a melhor música de todos os tempos (Like a Rolling StoneBob Dylan - 1965), ou a melhor música de tal década, que mudam ao sabor dos ventos, o filme daquele entardecer roda em minha mente.  A voz quase sumida, dos últimos momentos de meu pai, sussurra a frase que nos fez sentir, a mim e a Mari, privilegiados, diante de um quadro de profunda tristeza por saber que a separação era iminente.

Mais tarde, já no leito do hospital,  pronunciaria suas derradeiras palavras: "Agradeço a todos, o Patrão Velho está me chamando." Assim era meu pai. Firme em suas decisões, severo nas abordagens com seus filhos, mas capaz de uma demonstração carinhosa tão simples, tão breve, tão sutil, como caracterizou sua relação com seus filhos. Era a sua  maneira de amar.





quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Adelar Araújo

De como um gaúcho venta rasgada descreve um presépio:

                “Fazia a modo uma ramada no alto de uns cerritos e fingindo grotas e sangões e umas reboleiras; havia esparramados uns “alimais” entre boizinhos e ovelhas de bringuedo e mais uns figurões calamistrados, de coroa, que pareciam reis e pro caso um que era negro retinto, era o mais empacholado. E, perto desses, estava a Senhora Virgem maria e o Senhor São José e, entre eles, acamado numas palhinhas de milhã e uns musgos e umas penugens, estava o menininho Jesus, ruivito e rosado, nuzinho em pêlo, pro caso como uma criancinha que não tem pecado por mostrar as vergonhinhas de seu corpo de inocente.”
                                                                   João Simões Lopes Neto

Neste novo ano
Que o minuano seja brando
Que o inverno seja amigaço
Que as idéias “samiadas”na primavera
Brotem e se esparramem que nem
Carrapichos agarrados nas lãs das
Ovelhitas que você, por vadio,
Não cuidava, quando piá.
Que a saúde não te deixe
Que o patrão lá de riba
Conserve tua carapinha tordilha.
E vê se  ensina o João Bola
A “trabalhar”com o violão
Que ele aprenda a tocar
A “Velha Tapera”dos Bertussi
Pro Tio Juca se borrá todo
Que nem terneiro mamão.
Que tua “pessegueira velha”
Prossiga nesta guerra santa
E te traga para o bom caminho
(A cabresto, cinchado até)
E que o Breno continue colorado
Guente no osso do peito
Por que charque de turuno
Não amolece na primeira fervida.

É o que deseja teu sempre amigo
João 14, a trigueira velha e a
Trigueirinha Enoema.

Um quebra costela do tamanho do
Rio Grande.

Estância da Lagos – Dezembro de 1.900

João Alberto Ferreira dos Santos


Dançando no asfalto
(Da série: aprendendo a ser louco)

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

“GUIE UM POUCO PIÁ”

          
           Corria o ano de 1.979. Isto era um Domingo. Regulava umas nove e meia da manhã. Seu Aristeu, nesta quartiada da existência, se arrinconava no Barracão. Assucedeu que ele precisava pegar uns pertences em São José do ouro, cidade lindeira, “cosa” inadiável, de urgência. Tinha, na ocasião um corcel GT 73, lindaço, que por um desses mistérios da vida só ele e o Charque, o guri mais velho, guiavam. Chamou o Charque. Nada. Chamou o Aliche. Nada. Deu um vistaço no pátio e encontrou o Catorze trepado num pé de espora de galo, com uma adaga de taquara na mão, peleando com inimigos imaginários.
-          Venha cá, piá!
-           Sim, Senhor?  Chegou o guri num üpa”, sujo de sangue, pois acabara de degolar três chimangos.
-          Embarque! Vamos dar uma volteada.
                         Rumaram.
                         A viagem transcorria calma. Enquanto o seu Aristeu guiava o corcel, com atenção máxima, o piá se encarregava de contar os palangues encordoados pelo caminho, aquilo mais alinhado que teto de leitão...
                          Buenas, termino depois, enquanto isso, até lá, leitores.

                        João Alberto Ferreira dos Santos, o 14.



Pergunte ao João, o 14

João Alberto, o oitavo rebento, filho de Aristeu, o singular - nas palavras do Rui - e de Enoema, aquela que - no galanteio de seu marido - era ao mesmo tempo "amiga sincera, filha obediente, esposa leal e mãe carinhosa".

Se causos nos escapam, a memória falha, simples: pergunte ao João, ao certo saberá, não apenas vagas lembranças, mas riquezas de detalhes com enredos engraçados.

O gesto em "Agnus Dei", pela enésima vez, sempre impressiona. (Herança daqueles tempos).

Ainda piazito, conta-se, do alto de alguma mesa, declamava poesias, e poesias, até o sol raiar. Pessoas boaquiabertas, meio que magnetizadas, ouviam, riam e,  por fim,  pediam bis.


quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Meu pai, um homem singular (por Rui)



De conhecimento vasto
Que não se pode dimensionar
Conhecimento que não adquiriu
Com diplomas universitários
Mas na lida pela vida afora
E também em leituras dialéticas
De livros, textos e discursos
Enfim, obras literárias de todos os matizes
Que o fez sonhar, já em meados do século XX
Bem antes de o homem pisar na lua
Em viagens interplanetárias
Era singular até nos sonhos, o meu pai
Sonhava com outros sistemas solares
Mas acalentava um sonho terreno
A universalidade da língua no esperanto
E o brilho nos olhos ao falar
Num e noutro desses sonhos
Esse homem singular era meu pai
A quem aprendemos a amar desde sempre
A quem devemos tudo que o somos
Pois além desses sonhos de homem
À frente do seu tempo
O fardo da vida terrena era imenso.
Pois aquela que lhe deu todos os frutos do amor
Uma morena, de cabelos cacheados,
De uma ternura sem fim, no meio do caminho
Ou no início de uma longa caminhada
Se foi atendendo a um chamado que nos impôs
Sérias dúvidas sobre a própria existência do Criador
E o meu pai estava lá, repartido
Entre a imensidão de uma dor
Que nunca nos abandonou,
E que por vezes volta, como agora...
E uma ninhada de razões para tocar em frente
Oito razões, cujos olhos insistiam em lhe dar forças
Mas aquele homem singular, que foi meu pai,
Manteve-se sereno o bastante pra seguir
E seguiu numa sequência de sonhos e ações
Que nos fez homens e mulheres
Com a sua mesma estirpe
Essa singularidade da vida de meu pai
Nos acalenta – em meio à dor –
E nos inunda de um gostoso orgulho
E entre sonhos e exemplos neste mundo terreno
Foi esculpindo nossas vidas, nosso caráter
Por vezes, ultimamente,
Já quando dizia ‘estar por um fio’
Ou mais adiante ‘mal e mal vivo’
Falava que já não era mais um homem singular
Como se essa sua singularidade fosse efêmera...
Efêmeros somos nós, com nossa pequenez de alma
Quando deixamos a miséria do egoísmo
E a falta de solidariedade nos tomar conta
A singularidade do meu pai, pra nós -
E quem teve o privilégio de o conhecer sabe do que falo -
Atravessará gerações e gerações
E, quiçá, um integrante dessas gerações
Daqui centenas ou milhares de anos
Entre uma prosa e um chimarrão
Num desses planetas, hoje desconhecido,
De um dado sistema solar, revele, sem meias-palavras:
- Isso tudo um meu parente, tal de
Aristeu Ferreira dos Santos, já sabia!
E acrescente: - não é à toa
Que um meu antepassado
Há centenas ou milhares de anos,
Já dizia:meu pai era, foi e sempre será
Um homem singular’.

terça-feira, 16 de março de 2010

Derli Dutra - Depoimento




O "Seu Aristeu"

Quando comecei a trabalhar na Cooperativa Agrícola Mista Ourense Ltda, já conhecia de "vista"o vizinho que trabalhava com artefatos de concreto, e que vez em quando "roubava" um amigo de jogo de futebol no velho campinho do depósito de serragem para dar-lhe emprego em sua oficina.

Mas ele não trabalhava mais fazendo tubos para bueiros, palanques e coxos de concreto e até lápides para sepulturas. Agora era o balanceiro da Cooperativa, que com o fim da era da madeira e as madeireiras fechando com a proibição do corte de pinheiros, uma cooperativa cerealista era a esperança de muitos como eu de encontrar trabalho na própria cidade.

Com o passar dos dias, naquele final de 1971, início de 1972, fui percebendo que ele não era para a cooperativa um simples balanceiro, mas o coordenador das atividades de recebimento, preparação e expedição dos cereais entregues pelos agricultores associados que tinham nele absoluta confiança. Numa tarde chuvosa de 1972 acabei descobrindo uma outra qualidade do "seu" Aristeu. Ao lado do armazém número um, fez-se um "puxado", anexo para abrigar a balança e servir de escritório, na época havia muito mato ao redor e ninguém pensou em instalações sanitárias. No ano seguinte com a ideia de ampliar construindo um armazém e secador ainda maiores foram-se as moitas e restou urna improvisada latrina totalmente imprópria para uso humano. Lá fora chovia e sentado em uma mesa ao lado da minha o "seu" Aristeu e o agrônomo Renato Christmann, que era meu chefe na época, elaboraram uma espécie de pré-orçamento e com ajuda de retalhos de papel milimetrado e um mal apontado lápis número um, seguindo suas instruções fiz o desenho da planta, saiu um banheiro do lado direito da porta lateral do A-I, com três vasos sanitários, dois chuveiros, mijadeiro masculino, pia e um reservado para visitantes. Assim descobri que todas as construções, do inicio em 1970 até sua saída, já nos anos 90, foram todas projetadas e construídas pelo próprio.

Com o crescimento da Cooperativa criaram uma filial na cidade de Barracão e para lá mudou-se o "seu" Aristeu com familiares, malas e cuias com o fim de construir e gerenciar a nova unidade até que pelo menos os novos funcionários fossem capazes de fazer a filial funcionar.

O destino havia reservado a ele a oportunidade de fazer em sua terra natal a empresa que seria fundamental não só para o desenvolvimento da agropecuária local, mas da cidade como um todo, na época encarregado de prestar assistência ao serviço dele seguidas vezes viajei num velho jeep para trabalhar na filial de Barracão, ensinando os novos funcionários e expedindo cargas da produção recebida e quando não era possível fazer as refeições no único estabelecimento da cidade, a bodega do Gentil Clamer, tinha o grande prazer de mais uma vez experimentar da fidalguia do colega.

Com a filial ja andando com as próprias pernas, ele voltou para Sao José do Ouro, e aqui teve o mais espetacular de seus desafios, ampliando as instalações da Matriz, teve de enfrentar um problema que irritava os Diretores, primeiro: o calor produzido para secar grãos não era uniforme, causando prejuízos, depois, nos produtos armazenados, segundo: consumia muita lenha. A essa altura, eu ja tinha outro chefe o agrônomo Walter Celso Brandtner, que também trabalhava como agrimensor, a parceria com o "seu" Aristeu foi imediata e sobrou para mim a parte do desenho.

Havíamos conseguido na prefeitura uma velha mesa de desenho e a usávamos no departamento técnico da Cooperativa para serviços da empresa e do agrônomo. Voltando ao problema do secador, por diversos dias eu o vi sentado na mesa de desenho examinando as plantas do secador e do forno, uma tarde mostrou-me o que estava pensando fazer, tratava-se alterações no projeto inicial da fábrica de secadores, mudando a passagem do fluxo de calor por dentro do forno do secador, de forma que ele sai-se homogêneo e muito potente na máquina, resolvendo o problema de secagem. Meses depois, pode-se constatar que ele estava certo, nao só pela boa qualidade da secagem, o que proporcionou melhor conservação dos cereais, mas constatou-se urna economia de lenha em tomo de 20%, o que foi aplaudido e admirado por diretores e engenheiros da cooperativa e da fábrica de secadores. Pensemos nurna façanha destas nos nossos dias; quando se tenta convencer um homem que uma árvore em pé, vale muito mais que uma árvore derrubada. Aqueles 20% correspondiam a quantos metros cúbicos de madeira (não consigo lembrar)? E correspondiam a quantas arvores? Concluindo; isso ocorreu no início dos anos 80, mais ou menos 1982, até os dias de hoje quantas árvores deixaram de ser derrubadas, que tamanho teria a floresta salva por um velhote calculista.

A exemplo de Barracão, construiu unidades em Machadinho, Cacique Doble e Santo Expedito do Sul, mas a sua grande obra está bem em frete as instalações da CAMOL, na sede em Sao José do Ouro.
Oriundo da regiao noroeste do estado o Eng. Agr. Walter Celso Brandtner admirava as instalações da Cooperativa de Sarandi, enviou-me até lá para conhecer o prédio do escritório e desenhá-Io para servir de referência ao projeto que o Dr. Killer, apelido que ele deu ao "seu" Aristeu, amante de leitura, que sempre tinha urn livrinho na gaveta de sua mesa de trabalho, do gênero faroeste, seu preferido, quase sempre.
Assim nasceu o projeto e meses depois, já estávamos na nova obra do velho Aristeu. umn confortável prédio que passou a ser nosso escritório, mas ele preferiu continuar em seu cúbiculo mal iluminado, no anexo da balança.

Enfim, um sujeito que criava planilhas para controle operacional com lápis e régua escolar, em qualquer tipo de folha de papel, fazia prójetos de silos, armazéns, prédios em retalhos de papel milimetrado, usando uma lapiseira metálica 0,5mm e um desdentado escalímetro, trabalhava em uma velha prancheta cheia de furos, com uma lâmpada incandescente, queimando a calva, e usava uma velha calculadora (Facit) a manivela e que pôs em pé instalações que tempestades e vendavais jamais abalaram, e que continuam sendo as melhores que temos, um sujeito que entendia de administração, construções, instalações, que fazia da matemática diversão, que projetava e executava obras que resistem ao tempo, não era um sujeito qualquer. Esse indivíduo, franzino, com a calva sempre protegida pelo tradicional boné de orelhas, de óculos grandes, sempre embaçados, que gostava de usar bombachas, ouvir boa música, mergulhar no mais profundo de sua inteligência, envolto na fumaça do cigarro e no sabor do cafezinho da Baixinha, em sua prancheta. Das nossas imperfeições, a vaidade e a arrogância, são as que mais prejudicam a visão de nossa inteligência, demoramos a perceber que a pessoa próxima de nós tem mais que um dom, tern genialidade, o dom dos dons, pois o sujeito com quem convivi por quase três décadas, quase todos os dias da semana, era um desses, escondido atrás de um sorriso de moleque, quando seu bigodinho grisalho parecia o fole de um acordeão, que às vezes dedilhava algum  clássico, deixando rústicos sanfoneiros boquiabertos.

ARISTEU FERREIRA DOS SANTOS, não tinha listas com certificados e diplomas em seu currículum, aliás, coisa que nunca fez, seus diplomas e certificados eram modestos, o que o fazia tão criativo era o hábito de ler constantemente, não deixou sequer um livro relatando o que sabia e podia, fez algo muito melhor: passou a seus filhos e filhas o seu melhor, o gosto pela leitura, por isso seus herdeiros vão de competentes professoras a bancários e juízes.

Um dia, já aposentado, irritado com a maneira que os diretores tratavam os colegas operários, por cujos direitos sempre lutou, retirou-se, abrigou-se entre seus livros e nunca mais voltou.

Quando o vi pela última vez, eu estava em uma clínica tratando meu já debilitado sistema cardíaco, conc1uí que o grande mestre do universo deve estar preparando um grande projeto, algo revolucionário e certamente meu velho amigo e mestre ainda sorridente, estava convocado para participar.

Dias depois, os sinos dobraram, o meu Mestre atendera a convocação.

Lavrada em minha biblioteca, em 07 de janeiro de 2010, às 17h30min.

Derli Dutra